quarta-feira, 28 de março de 2012

O OUTRO ANTÔNIO CALADO

por Eduardo Minc, domingo, 12 de Fevereiro de 2012 às 13:11 ·

  Tarde de mais um domingo insuspeito, daqueles que sugerem o ócio como o melhor dos ofícios para os preguiçosos por predisposição genética. Eu poderia estar vendo a exposição do pintor Modigliani -não, não é um prato italiano, tipo, Talharim à Modigliani - ou correndo, já que atividade física e esportes são alguns dos ingredientes mais eficazes para manter a ponta de meu nariz acima da água e me defender das kriptonitas da vida.
     Lembrei-me hoje, sei lá porquê, mas, com muito carinho, de Antônio Calado, não o autor de Quarup, mas o outro, que eu vim a conhecer na Revista Geográfica Universal, da Bloch, meu primeiro emprego, quando ainda estudava na PUC do Rio de Janeiro. Para não repetir o nome da figura mais emblemática que já conheci no Jornalismo, vamos chamá-lo de"O Outro", ok? Bom, se você concordou, ótimo, caso contrário, fodasse, porque quem está escrevendo sou eu,não é mesmo...hehe.
      Entre algumas figuras marcantes, cheguei à Geográfica como uma espécie de Tintim no mundo da aventura-Vol 1, eu era o mais jovem, e o restante da redação, talvez por cansaço da vida ou por já ter vivido um bocado de emoções, me recebeu bem , excessão feita às mulheres, que também eram tão escrotas que sequer mereciam mais do que algumas brincadeirinhas e expressões demagógicas de cordialidade, como Bom dia, Por favor, obrigado, e vá a merda, o que não é tão grave assim numa redação.
      Havia mais de uma pessoa interessante, mas uma em especial, O Outro, me causava uma mistura de compaixão, orgulho, gosto de aprender e uma certa proximidade que veio sei lá da onde (esqueçamos as doutrinas kardecistas, ateístas ou da casa do caralho). No final da década de 90, onde passei a maior parte dos três anos e meio que lá trabalhei, o Outro era um redator de mão cheia, um poço cultural sem fundo e o pilar para que a Revista saísse com o mínimo de erros, históricos e ortográficos.
      Mas O outro era também o que se prenunciava o fim dos tempos de um jornalismo divertido e sério ao mesmo tempo, com pitadas saborosas de humor que me encantavam, a mim e ao meu romantismo de esperar ansiosamente minhas matérias saírem à cada mês. (só um parênteses para reforçar o quanto eu era romântico e estúpido, não necessariamente nesta ordem. Quando me efetivaram como redator, após um período de estágio, fui comemorar com a minha namorada num restaurante meio chique na Lagoa Rodrigo de Freitas, ou, ao redor, melhor dizendo, e em vez de relaxar, saboreamos a sobremesa do meu existencialismo, de quem não admitia estar ganhando tanto dinheiro para pouco trabalho, vejam vocês. O mais interessante que, mesmo como Cobra criada, teoricamente, aos 44, o dobro e mais uns dias da idade que tinha, eu continuo a experimentar aqui e acolá a minha inocência fundamental.
     Bom, mas n estamos aqui pra falar de mim, ora bolas. Para começar, Calado, O Outro, falava sem parar, principalmente após o almoço, quando chegava bêbado à redação e alguns idiotas diziam que era o primo dele quem trabalhava à tarde. Era nesses momentos que a sua filosofia rasgava o peito e ele folheava a ouro quaisquer banalidades, com tanta empolgação, que espirrava de seus lábios uma chuva de bactérias em minhas, então, camisas de grife e cabelo com um toque de gel.
    Tive a honra de dividir um desses porres, sempre de chope com pouco colarinho. Lembro-me que neste dia, ele me disse, com o dedo em riste , e quase num tom profético: "Dudinho, a felicidade é alguma coisa que está em algum lugar dentro de você. Cabe a ti encontrá-la", cuspiu meu colega, filósofo abissal.
E escorado por mim, chegava na sala de trabalho e , mesmo com trocentas cervejas, era mais lúcido do que todos os funcionários do maluco do Adolfo Bloch e o cordão dos puxa-sacos.
     De cabelos brancos, vivia cofiando sua barba de capitão de barco de pesca, revezava sua meia dúzia de camisas e suas duas calças surradas jeans. Desapego em forma de gente, sabedoria pura e humor genuíno, num tempo em que trabalhávamos...ai que saudades, em máquinas de datilografia. O som do a, esse, de, efe, ge, era como Mendelsson nos meus ouvidos.
      Aos 60 e poucos anos, vivia em seu segundo ou quarto casamento, e , emotivo como o Yúri do BBB 12, que chora pra ser escravizado pela namorada gaúcha-, O Outro se emocionava à toa, pegava em minhas mãos e dizia. "Como eu queria ser seu pai, garoto. Você vai longe".
      Longe, exatamente, o mais que fui, foi a Moscou, cobrir pelo COB, Os Primeiros Jogos Mundiais da Juventude, mas Calado, o Outro me fez acreditar que o desapego e a doação do que se carrega de melhor -sabedoria - nos enlevam à despeito dos olhares tortos da turba.
      Um outro dia, um garoto, espinhudo e com cara de um dos sobrinhos do Pato Donald, hoje Editor-executivo de um dos Jornais de maior prestígio no Rio, veio nos perguntar onde ficava a Polinésia. Numa sintonia, que parecia regida por Rakmaninhov, O Outro disse que tínhamos várias, a Maionésia, que nos faz tão bem no pão, e engatamos em sacaneá-lo, até que ele encolheu o rabinho e voltou para a sua baia.
     Calado morreu quando eu já tinha sido demitido da Revista por um chefe que me ensinou quase tudo que sei, exceto a covardia, e eu n pude agradecer o tanto que queria, pois ele se foi um dia antes do que eu tinha decidido ir visitá-lo. Mas fica um outro ensinamento, ocorrido naqueles dias em que a gente se acha um merda. Andando pelos corredores e esbarrando nos cachorros de Seu Adolfo Bloch, cabisbaixo, eu ouvi, juntamente com um literal temporal bacteriano, suas doces e lúcidas palavras, não importa se antes ou depois do almoço. "Eduardo, você nasceu Jornalista. Você é um Jornalista de verdade e nunca esqueça disso". Me emocionei e ergui a cabeça algum tempo depois. Hoje, não sei bem quem ou o que sou, ou melhor, estou, mas O Outro Antônio Calado, lá de cima, parece ainda querer me dizer: "Filho, levanta a poeira , e vai ser gauche na vida...."
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